Ponto Cego do Mercado

Europa e o sequestro por Zeus

Pedro Carvalho

21 ago 2025, 10:17 (Atualizado em 21 ago 2025, 10:17)

Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, então dê uma olhada no gráfico abaixo:

Fonte: Bloomberg e Empiricus Asset

O que esse gráfico nos mostra é o retorno acumulado das 500 maiores companhias americanas (SPXT) versus as 600 maiores europeias (SXXGV). Percebe que a partir do final de 2015 as duas linhas se descolam e nunca mais voltam a se tocar? Isso me intrigou profundamente quando vi pela primeira vez: “O que aconteceu com a Europa que fez suas companhias andarem de lado por tanto tempo de lá pra cá?”. Parece que alguma coisa parou de funcionar a partir daí – alguma coisa sequestrou o brilho da Europa.

Falando em sequestro, o nome do continente parece propício. De acordo com o mito grego, Europa era a filha do rei fenício Agenor, que chamou a atenção de Zeus por conta de sua beleza contagiante. Zeus então se disfarçou de touro para que sua mulher Hera não percebesse, e nesta forma  encantou a princesa fenícia. Foi neste estado de encantamento que a Europa foi sequestrada por Zeus e levada à ilha de Creta, onde se tornou rainha e teve seus três filhos: Sarpedão, Radamanto e Minos.

Mas quem é Zeus fora do mito? Quem sequestrou a Europa após meados de 2015? Nessa busca pelo sequestrador, é impossível ignorar a proximidade com um dos eventos mais marcantes desse novo milênio: a grande crise financeira de 2008 – ou a crise de 29 da nossa geração. E apesar do gatilho ter vindo da bolha imobiliária americana, o seu estouro gerou ondas globais de destruição de riqueza, levando uma série de países à ruína financeira. 

Notadamente podemos citar os PIIGS, acrônimo muito utilizado na época para se referir aos países do Sul da Europa e a Irlanda. Estes países se viram em uma armadilha: sem a capacidade de  desvalorizar suas moedas de forma a tornar as exportações mais baratas e retomar a competitividade – a válvula de escape tradicional nesses momentos de crise -, tiveram que recorrer às rígidas medidas de austeridade impostas por seus credores. O resultado foi uma década perdida, e a promessa de prosperidade se converteu em um ciclo de endividamento e sacrifício.

Fonte: The World Bank e Empiricus Asset

Apesar da nobre intenção da criação da Zona do Euro – unificar um continente marcado por séculos de guerra e criar uma moeda forte para rivalizar com o dólar -, a união monetária sem outras medidas de balanços e contrapesos se revelou uma gaiola dourada. Outro exemplo é o que aconteceu na própria Alemanha, país mais relevante do bloco.

Após a formação da Zona do Euro em 1999, as exportações alemãs foram imensamente beneficiadas, uma vez que o Marco Alemão era a moeda mais forte do bloco: isso barateou seus produtos para o resto do mundo, gerando superávits comerciais recordes. Esse sucesso trouxe à reboque outros países do norte que mantinham relações estreitas com a Alemanha, mas agravou a dependência de todo o bloco em relação ao país, que se viu na posição de fiador – muito relutante e austera – da Zona do Euro.  Essa divergência entre o norte credor e o sudoeste devedor criou uma fratura gigantesca no continente, com a Alemanha no epicentro – exercendo tanto papel de líder quanto de refém.

Fonte: The World Bank e Empiricus Asset

Mas se engana quem acha que o “sequestro” foi apenas econômico e monetário. Enquanto a crise financeira e a austeridade paralisaram o presente do continente, outro fator minava pouco a pouco as bases da prosperidade do futuro Europeu: um ambiente regulatório que ao invés de fomentar, sufocava a inovação tecnológica.

Vale contrastar com os Estados Unidos, pela distância abismal entre as abordagens. Movido por uma cultura do “move fast and break things”, um profundo mercado de capitais e regulação tradicionalmente leve, o país criou um ecossistema perfeito para a revolução do “intangível”. Enquanto isso, na Europa, prevaleceu o “princípio da precaução”: leis complexas sobre privacidade de dados, rígidas regulações trabalhistas e uma pesada burocracia para a abertura de novas empresas. Antes que você me julgue, quero fazer um parênteses: não estou entrando nos méritos das boas intenções por trás das medidas, como proteger o cidadão e levar em conta o bem-estar social, por exemplo – com as quais concordo inclusive. Mas é ingênuo ignorar as consequências negativas de certas medidas – principalmente quando falamos de competitividade global. É preciso levar em conta qual será o seu posicionamento no futuro, até para manter a qualidade e sustentabilidade das medidas adotadas no presente.

Com isso, o capital de risco, oxigênio da inovação tecnológica, fluiu de forma muito mais cautelosa para a Europa – a China acabou ocupando seu lugar – e esse ambiente menos competitivo, mais avesso ao risco local, explica em grande parte por que o gráfico que abre esse artigo mostra os EUA decolando. O S&P 500 foi altamente influenciado pelo crescimento exponencial das gigantes de tecnologia, enquanto o STOXX 600, com suas tradicionais companhias – bancos, indústria e bens de consumo – andaram de lado.

Fonte: Science and Engineering Indicators e Empiricus Asset

A consequência mais direta desse ambiente de inovação mais contido  é a impressionante ausência de Hyperscalers europeus. Se você nunca ouviu falar sobre o termo, Hyperscalers – como a AWS (Amazon), Azure (Microsoft) e Google Cloud (Alphabet) – são os pilares da era digital, responsáveis pela construção e operação da massiva infraestrutura  de computação em nuvem sobre a qual quase toda a economia do século XXI se sustenta. 

Enquanto os EUA deram à luz esses gigantes e a China, através de uma estratégia estatal deliberada, criou seus próprios campeões, como Alibaba e Tencent, a Europa permaneceu paralisada com suas questões domésticas. Não houve esforço coordenado e nem ambiente de mercado que permitisse o surgimento de qualquer competidor europeu à altura. E com frequência, as companhias promissoras foram adquiridas por concorrentes americanas antes que pudessem atingir uma escala global.

Fonte: Statista

Hoje, a grande maioria dos dados de cidadãos, companhias e até mesmo governos europeus é armazenada e processada em servidores americanos. E agora, com a aceleração do desenvolvimento por IA, a luta pela sua soberania digital se tornou ainda mais crítica. Fica a dúvida se o bloco conseguirá atuar de forma coesa em torno desse objetivo, mas o ponto de partida – anos de torpor tecnológico, conflitos sociais, questões migratórias e guerras – não me parece favorável.

Fonte: Koyfin e Empiricus Asset

Enfim, a minha conclusão é que Zeus é a própria estrutura, rígida e inerte, que a Europa construiu para si: a união monetária sem união fiscal, as regras de austeridade que puniram em vez de estimular, e um emaranhado regulatório que priorizou a precaução sobre a inovação. Quando Zeus levou a Europa para Creta, fez dela uma rainha e isso poderia ser visto como sinal de glória e prosperidade. Infelizmente, o sonho não se materializou e a Europa se viu presa em uma ilha de estagnação, enquanto o resto do mundo velejou para novos horizontes.

TLDR: A armadura criada para fortalecer o continente europeu contra os EUA se tornou uma prisão, limitando seus movimentos e sequestrando o brilho de sua economia por mais de uma década.

Abraços,
Pedro Carvalho

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