Ponto Cego do Mercado

Ignore a Onda, Entenda a Maré

Pedro Carvalho

17 out 2025, 11:10 (Atualizado em 17 out 2025, 11:10)

TLDR: Uma bolha de IA é apenas a crista barulhenta e espumante da onda que captura os olhares do mercado, o perigo óbvio sobre o qual todos gritam da praia. O monstro real, silencioso e implacável, é a maré alta da desvalorização fiduciária, que avança metro a metro, ano após ano, engolindo o terreno firme sob os nossos pés.


Não é novidade pra ninguém que o mundo em que vivemos é hoje muito mais incerto do que já foi no passado. Se engana quem pensa que a causa disso é Donald Trump e seu jeito intempestivo de agir. Na verdade, ele é muito mais uma consequência do que a causa.

Trump anunciando as tarifas no “Liberation Day”.
Fonte: Google Imagens

Por mais complexo que seja atribuir fatores para cada elemento responsável pelo momento em que vivemos, tivemos ao longo destes mais de 50 anos momentos decisivos que ajudaram a moldar o nosso presente. De forma não exaustiva, podemos citar o fim do acordo de Bretton-Woods, com o Nixon Shock, o fim do sonho japonês com a consolidação da hegemonia americana, a globalização e o processo de desindustrialização americana (com a sua sucessiva financeirização), a bolha das ponto.com, a criação da União Europeia e sua (frustrada) tentativa em rivalizar o dólar, a Grande Crise Financeira de 2008 e o longo ciclo (talvez além da conta) de “juros zero”, e, finalmente, a pandemia de COVID de 2019, com o maior conjunto de pacotes de estímulos já feito na história da humanidade.

Creio que esses elementos são responsáveis por nos trazer até aqui, um mundo marcado por três grandes tendências:

  • Disrupção geopolítica com a fragmentação do bloco Ocidental
  • Volta dos juros mais elevados (apesar do momentâneo afrouxamento
  • A desvalorização acentuada das moedas fiduciárias
Diminuição do poder de compra do dólar e valorização do ouro desde 1971.
Fonte: Koyfin

Essas três grandes tendências não começaram ao mesmo tempo e não foi ontem, mas estão intimamente ligadas. O que conecta todas elas é a maior incerteza em relação ao futuro e um dos sentimentos mais legítimos que possuímos: o medo.

O medo assume vários formatos, com palavras distintas para materializá-lo: volatilidade, dúvida, instabilidade, tensão, inquietação e desconforto. Assim como a volatilidade, esse sentimento oscila entre picos de otimismo desmedido e pessimismo irracional. Por isso parece tão difícil navegar nesse mar ruidoso dos mercados globais.

Fear and Greed Index.
Fonte: CNN

Nesses momentos, é natural que busquemos aquilo que nos conforta: aquilo que conhecemos, pois gera uma sensação de domínio e clareza, e aquilo que conseguimos prever, pois gera uma sensação de controle. Só que esse lugar comum, consolidado ao longo de anos de existência humana e fundamental para nossa sobrevivência em ambientes que, apesar de hostis, não são muito dinâmicos, se torna uma grande armadilha quando num presente cujo futuro se descola tanto da realidade. É necessário um framework diferente pra navegar nessas águas turbulentas. Um novo mapa, uma nova bússola, uma nova interpretação das estrelas.

Esse é o tema abordado neste artigo: como navegar nesse ambiente de incertezas cada vez maiores.

O primeiro passo é reconhecer de forma inequívoca o maior (e mais prejudicial) viés que possuímos enquanto investidores brasileiros: o Home-Bias. Que fique claro: ele não é exclusividade nossa. Estudos e mais estudos mostram como ele é uma constante em praticamente todas as geografias. A grande questão é o quão danoso esse viés é para o investidor nacional. Um comparativo bobo, porém poderoso: veja só o padrão de investimento do investidor local, em geral muito mais concentrado em ativos locais, versus o investidor americano, que possui muito mais exposição global.

Análise Comparativa do “Viés Doméstico” (Home Bias) em Ações por País.
Fonte: Charles Schwab, Macrobond, World Federation of Exchanges, IMF (Fundo Monetário Internacional) e World Bank (Banco Mundial), com dados de 10 de fevereiro de 2022

O segundo passo é compreender que o hiper-foco no risco cambial, embora domine as preocupações do investidor local, é uma visão incompleta de um problema muito mais amplo. Focar na relação entre dólar e real é como olhar para uma onda e ignorar os movimentos da maré. Esse é um processo de longuíssima data que ganhou grande tração nos últimos anos, principalmente após a COVID-19. Basicamente, acentuou o peso do poder de precificação no valor dos negócios, pois em uma realidade em que o denominador (a base) está em queda livre, ter o controle efetivo do numerador (preço) não é mais vantagem, mas necessidade de sobrevivência.

Quando reconhecemos esses dois aspectos da nossa visão limitada, podemos começar o processo de expansão do nosso portfólio global, sem hesitação ou receio. E naturalmente compreender o peso das reservas de valor em nossa carteira: o ouro, a mais tradicional e conhecida de todas, e o Bitcoin, que democratiza o acesso à pessoa física por conta de seus protocolos transparentes, de operação imediata e rede descentralizada. Embora o debate sobre os fundamentos intrínsecos desses ativos seja complexo e multifacetado, para a nossa tese, o ponto crucial não é esse. A principal qualidade deles aqui é a sua capacidade de preservar valor enquanto a base monetária se desintegra. O foco é a sua função, não a sua essência.

A outra ponta deste processo de expansão tem a ver com o investimento em tecnologia. E aqui entra a questão do poder de precificação. A tecnologia é uma parte cada vez mais essencial em nosso dia-a-dia, puxada em grande parte pelas tecnologias de consumo, mas sustentada pelo poder transformador, tanto como facilitador, quanto como potencializador do nosso trabalho. O seu valor é intangível e, por isso mesmo, tão difícil de se precificar de forma inequívoca: quanto vale? Vale o quanto as pessoas estiverem dispostas a pagar (e normalmente elas estão bastante dispostas). Essa é uma realidade que estamos presenciando, particularmente, com muita intensidade desde o lançamento do ChatGPT e a “consumerização” da Inteligência Artificial.

Preço do iPhone em dólar, por país.
Fonte: Visual Capitalist 2025

Por si só, o lançamento do ChatGPT já foi um evento extraordinário: em questão de 2 meses atingiu uma base de 100 milhões de usuários, superando o recorde até então do TikTok, de 9 meses. Hoje, quase três anos depois, a receita anual recorrente (ARR) da companhia superou US$ 10 B e ela está sendo avaliada em cerca de US$ 500 B. Com a popularização da IA, via LLMs, houve uma profusão de novos negócios e ampliação significativa de mercado, alterando completamente a dinâmica de investimentos VCs e expectativas de retorno destes investimentos. Inclusive, recentemente tivemos companhias, como a Cursor e a Lovable, que atingiram US$ 100 M em receita anual recorrente em tempo recorde e com um número bem menor de colaboradores. 

Aumento consistente da receita por colaborador ao longo dos últimos anos.
Fonte: Newfund

Todo esse desenvolvimento é suportado por uma infraestrutura complexa de datacenters, que apesar de grandiosa, ainda não parece ser suficiente para trazer a revolução da Inteligência Artificial. Para se ter uma ideia do nível de investimentos, a soma do CAPEX das grandes companhias de tecnologia passa os US$ 350 B e a projeção é que de 2025 à 2030, estes investimentos somem mais de US$ 1 trilhão.

Isso não quer dizer que todos esses negócios darão certo e daí vem uma preocupação, cada vez mais crescente, da sustentabilidade deste crescimento puxado por IA. E é neste momento que surgem os fantasmas das bolhas passadas. Afinal de contas, estamos ou não estamos em uma Bolha da Inteligência Artificial? 

Os defensores de uma Bolha de IA levantam uma série de questionamentos sobre o momento em que estamos vivendo:

  • Existe necessidade de se fazer os investimentos bilionários das Big Techs?
  • Quando esse investimento vai se pagar?
  • As soluções de IA irão, de fato, aumentar a produtividade do trabalho?
  • Quão sustentável são as práticas de crescimento das companhias na ponta deste movimento? Até onde a receita destas companhias é mesmo real?
Expectativa de CAPEX para os grandes hyperscalers até 2027.
Fonte: Goldman Sachs

Ao mesmo tempo, vemos pensadores relevantes levantarem questões práticas sobre o futuro do trabalho e, até mesmo, da humanidade, com relatórios sinalizando que até 2027 a tecnologia já terá avançado ao ponto de haver uma super inteligência capaz de colapsar nossa civilização. Independente do cenário, catastrófico ou não, é inegável o impacto que a IA já gera em nossas vidas e quanto continuará impactando nos anos que virão. De acordo com o relatório “AI Monitor 2024” da Ipsos, 52% dos entrevistados dizem que a IA já mudou suas vidas e 2 em cada 3 pessoas acreditam que a IA trará mudanças para os próximos 3-5 anos.

A conversa sobre uma bolha de IA, por mais que nos (pre)ocupe, é um truque de mágica que desvia o olhar. Discutir se uma empresa vale US$ 500 ou US$ 700 bilhões é como polir os metais do corrimão do Titanic. E assim, enquanto debatemos o brilho, o casco do enorme navio range sob a pressão de um iceberg que já atingiu seu alvo: o verdadeiro problema está na régua que usamos para medir os ativos e não no preço deles. Essa régua está derretendo em nossas mãos.

Quando a própria moeda, o alicerce de toda a nossa contabilidade de valor, perde substância a cada dia, a busca por ativos com valor real e crescimento exponencial deixa de ser uma estratégia e torna-se um ato de sobrevivência. A pergunta que importa deixa de ser “qual o preço justo?” e se transforma em algo mais primitivo, mais urgente: “onde, neste novo mundo, o poder de precificar realmente se esconde?”.

É neste ponto que a história da tecnologia colide com o longo e silencioso declínio das moedas fiduciárias. O valor da tecnologia, especialmente da IA, reside em algo que a história nos ensinou a temer e a cobiçar: a inteligência em si, a habilidade quase mágica de resolver o insolúvel. A IA é um catalisador de eficiência com potencial de se infiltrar por toda a economia. As empresas que a dominam criam novos mercados e se tornam uma espécie de sistema circulatório da produtividade global. E ser indispensável, é a forma mais pura de poder sobre os preços: enquanto o dinheiro se afoga em sua própria abundância, uma solução tecnológica que poupa bilhões ou cria uma nova receita brilha por sua escassez. Ela é única!

Sabemos bem o que os governos e bancos centrais fazem quando a moeda adoece: eles se movem para (tentar) estimular crescimento e produtividade. E na minha visão a Inteligência Artificial é o motor de produtividade mais eficiente que já construímos. O valor real, como já falamos antes, está no intangível, na sua capacidade intrínseca de gerar produtividade, que não pode ser replicada por expansão monetária nem desvalorizada por decisões de bancos centrais.

Diante da inundação que se aproxima, Ouro, Bitcoin e a própria Tecnologia se revelam como as embarcações para a travessia. É verdade que cada uma delas enfrenta suas próprias ondas: tempestades de volatilidade e especulação que balançam o convés e assustam os navegantes de primeira viagem. Mas não nos enganemos: todas elas, sem exceção, são erguidas pela força implacável da maré que sobe. 

A diferença reside na natureza de cada embarcação. Enquanto Ouro e Bitcoin são como arcas robustas, refúgios de valor que flutuam para proteger e preservar, a tecnologia é um navio com seus próprios motores. E assim, além de subir com a maré, as companhias de tecnologia navegam e aceleram com ela, usando a própria força da mudança para se impulsionar.

Enfim, o risco de verdade não é o balanço de uma onda que eventualmente vai passar, e sim ignorar a maré que sobe teimosamente, sem jamais recuar.

Abraços,
Pedro Carvalho