Ponto Cego do Mercado

Lovable e a autofagia do Software

Pedro Carvalho

2 out 2025, 14:15 (Atualizado em 2 out 2025, 14:15)

TLDR: A barreira técnica do código, que por décadas filtrou quem podia construir o futuro digital, tornou-se uma ponte onde qualquer pessoa com uma boa ideia, auxiliada pela IA, pode atravessar.


Em um jantar na semana passada com um velho amigo, acabamos falando de tudo um pouco. E, claro, o assunto da IA surgiu: como ele estava usando, qual era sua experiência. Ele resumiu tudo em uma única palavra: Lovable! Não, ele não estava dizendo que a experiência era “adorável” – embora em parte seja -, mas se referindo ao nome da empresa de software com o crescimento mais rápido da história. Mas guarde essa informação por um momento, porque antes precisamos falar de outra coisa que tem tudo a ver com isso: “Vibe Coding“.

Caso você nunca tenha ouvido falar, o termo “Vibe Coding” foi popularizado por Andrej Karpathy, ex-diretor de IA na Tesla e uma figura importante na OpenAI – além de um notável educador na área. A ideia descreve a experiência de “aceitar o fluxo” – give in to the vibes – e quase “esquecer que o código existe”. O conceito virou um “meme” que deu nome a uma sensação que muitos já tinham: a de que a forma como criamos software estava prestes a mudar para sempre.

Andrej Karpathy usa o temo Vibe Coding pela primeira vez. Fonte: X

A filosofia por trás do Vibe Coding transcende a engenharia de software e se conecta diretamente ao processo criativo na arte. O renomado produtor musical e guru criativo Rick Rubin encampou o conceito, descrevendo-o como a “arte atemporal do vibe coding”. Rubin notou que a sua própria imagem — uma foto real dele com fones de ouvido e as mãos em um mouse — foi cooptada pelo público e se tornou associada ao meme Vibe Coding. Esse evento o inspirou a escrever The Way of Code (O Caminho do Código), um trabalho baseado no antigo texto de Lao Tzu, Tao Te Ching, que trata de como viver e ser.

Meme Vibe Coding, com a imagem de Rick Rubin.
Fonte: Google Images

Em uma conversa com Marc Andreessen e Ben Horowitz, Rubin explicou que para ele o Vibe Coding é o “punk rock da codificação”. Ele argumenta que todo ato criativo é uma forma de remixagem ou sampling, e não começa do zero. Da mesma forma que o punk rock democratizou a música, permitindo que qualquer pessoa com uma ideia se expressasse sem a necessidade de anos de estudo em um conservatório, o Vibe Coding rompe a barreira de ter que “aprender a codificar”. A IA, nesse contexto, é apenas mais uma ferramenta no arsenal do artista, como uma caneta ou uma guitarra, permitindo que o criador foque em seu ponto de vista e no que deve ser construído, em vez da execução técnica.

Thumbnail do vídeo relativo à conversa de Andressen, Horowitz e Rubin.
Fonte: Youtube

Na prática, a revolução é a seguinte: o desenvolvedor descreve suas ideias em linguagem natural (como português ou inglês), e a IA cuida do trabalho pesado de escrever o código. O profissional deixa de ser o programador para atuar mais como um diretor de arte ou diretor criativo, que orienta e audita o resultado. Karpathy chama isso de Software 3.0, onde os prompts que damos à IA funcionam como os novos programas de computador.

O desenvolvimento da IA está nos levando a caminhos surpreendentes, com tendências que aceleram muito o lançamento de novos produtos. Entre elas, vale destacar o código autogerado por ferramentas como Cursor e Devin; as interfaces que se criam em tempo real; e os “agentes” de IA, que agem de forma independente para resolver problemas. Acredito que esse movimento vai ganhar bastante força primeiro nos navegadores de Internet. A consultoria Gartner, por exemplo, prevê que até 2028, um terço de nossas interações com IA generativa será com esses agentes autônomos.

Emad Mostaque, co-fundador e ex-CEO do Stability AI, falando sobre desenvolvimento de softwares.
Fonte: X
Thumbnail do vídeo relativo ao lançamento do Imagine with Claude, que desenvolve os programas e interface de acordo com a interação do usuário.
Fonte: Youtube

Se você acha que isso é coisa só para grandes empresas de tecnologia, a boa notícia é que não é. A democratização da criação de software muda completamente a vida de quem quer empreender. Isso nos aproxima da visão de Sam Altman (CEO da OpenAI), de que em breve uma única pessoa poderá construir uma empresa de US$ 1 bilhão. Com a IA, um empreendedor sozinho ganha superpoderes para criar protótipos e testar ideias muito mais rápido.

Thumbnail do vídeo relativo à entrevista de Sam Altman.
Fonte: Youtube

Essa é a deixa perfeita para voltarmos à Lovable, a empresa que meu amigo citou. Ela é o grande exemplo dessa transformação. É uma plataforma que gera aplicativos prontos a partir de conversas em linguagem natural, feita para pessoas com grandes ideias, mas sem conhecimento de programação. E o sucesso é brutal: com integração de pagamentos, banco de dados e IA, ela já tem mais de 2.3 milhões de usuários e recentemente foi avaliada em $1.8 bilhão, tornando-se a empresa de software a atingir $100 milhões de receita anual mais rápido na história.

Comparativo do crescimento da Lovable.
Fonte: Lovable

Cito, novamente, a famosa frase de Marc Andreessen, “o software está comendo o mundo”. Para quem acreditou nisso, era inevitável que uma hora o software começasse a se alimentar de si mesmo.

Essa ideia de que o software está se devorando, claro, tem um eco direto no mercado financeiro. Se você acompanha o setor de tecnologia, deve ter notado a preocupação dos analistas com a disrupção das companhias de SaaS, o que ajuda a justificar a queda considerável que observamos em gigantes como Salesforce, ServiceNow, Atlassian e Hubspot.

Na minha visão, embora parte desse receio tenha fundamento — principalmente para as companhias que atendem clientes pequenos e médios —, o jogo é diferente para os titãs do mercado. Uma companhia como a Salesforce, por exemplo, ainda tem muito fôlego, pois seu foco são os grandes clientes corporativos. E esse universo tem uma inércia própria: as grandes corporações são mais lentas para adotar novas tecnologias e têm um medo compreensível de desenvolver suas próprias soluções do zero. Nesse ambiente, o velho ditado “ninguém nunca foi demitido por contratar a IBM” ainda ecoa com força — basta trocar “IBM” pelo gigante de sua preferência.

Comparativo de rentabilidade neste ano (YTD) para algumas companhias de SaaS.
Fonte: Koyfin

Diante desse cenário de disrupção, é natural que surjam previsões mais apocalípticas, como a de Jensen Huang, CEO da Nvidia, que acredita que não será mais preciso saber programar. Pessoalmente, eu não compartilho dessa visão. Vejo a IA com o potencial de liberar os desenvolvedores de tarefas repetitivas, permitindo que eles se concentrem no que realmente importa: o trabalho mais estratégico e criativo — algo que um bom desenvolvedor já faz naturalmente à medida que ganha mais experiência.

A IA, no entanto, deve ser tratada como uma parceira, e não como uma substituta que trabalha às cegas. O código que ela gera ainda pode conter falhas, vulnerabilidades de segurança ou simplesmente não seguir as melhores práticas. É por isso que o repertório do profissional se torna a peça-chave: é essencial saber como instruir o agente de IA, dominando a linguagem para criar direcionamentos eficazes. E quem já trabalhou com gestão de pessoas sabe como uma boa orientação faz toda a diferença.

É verdade que isso pode representar um risco para os profissionais juniores de hoje, que não foram preparados para essa revolução. Mas tenho uma perspectiva otimista: a próxima geração já vai crescer com a IA como uma ferramenta natural, usando-a a seu favor para desenvolver seus conhecimentos, talentos e ideias.

E quanto a nós, as gerações “pré-IA”? A mensagem para todos que estão lendo este texto é clara: é importante tirar esse atraso e se manter conectado a essa transformação para não ficar para trás.

Se você ainda não praticou o “vibe coding”, a hora é agora!

Exemplo de Landing Page criada com apoio do Lovable para uma plataforma fictícia, com base em briefing e logo desenvolvidos no Gemini. Acesso: https://captaflow.lovable.app/

DISCLAIMER: Isso não é uma propaganda da Lovable! E a minha visão sobre a Salesforce e outras companhias mencionadas não representa uma recomendação de (des)investimento.

Abraços,
Pedro Carvalho


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